O Pacific Crest Trail é um percurso pedestre e equestre que se estende da fronteira dos Estados Unidos com o México até à sua fronteira com o Canadá, seguindo os montes mais altos da Sierra Nevada e do Cascade Range. Fábio Inácio foi o primeiro português a conseguir atravessar os EUA a pé, percorrendo desde o Canadá ao México 4300 quilómetros em 108 dias.
Com 35 anos, Fábio Inácio é um apaixonado por viagens e fotografia, vive entre Portugal e os países nos quais trabalha, através da agência de viagens The Wanderlust. Em 2017 e 2018, Fábio tentou que a sua viagem fosse patrocinada, mas sem sucesso. Em 2019, decidiu arriscar e iniciar a sua caminhada por conta própria. Na sequência desta aventura, resolveu publicar o seu diário com o título “Walking around sul”, projeto com duas semanas mas que está a ser bem sucedido, garante o viajante.
Numa entrevista a Fábio, ficámos a conhecer esta tão significante e deslumbrante experiência por meio da natureza, local onde o aventureiro se sentiu bem recebido e conectado com tudo o que o envolvia.
Fábio, antes de mais, o que o fez querer embarcar no Pacific Crest Trail?
Eu descobri o PCT ainda sem sonhar que a minha vida ia ter muito de viagens e fotografia nela. No ano de dois mil e pouco, estava a jogar “à bola” com o meu primo Daniel no pátio da minha casa quando ele diz:
– Anda ali ao computador ver uma coisa.
Fomos e ele tinha aberto um artigo sobre o PCT, alguém andar no meio da natureza mais de 4000 km entre o México e o Canadá. Naquele dia pensei bastante nisso e depois desapareceu da minha cabeça, até que comecei a organizar a minha primeira grande viagem, uma viagem de 20 meses pelo mundo e aí automaticamente o PCT voltou a aparecer na minha mente, era para fazer em 2015. Não fiz. Tentei encontrar algum patrocínio em 2017 e 2018 mas não consegui até que disse que em 2019 não ia tentar. Em 2019 fui!
O que considera fundamental levar numa aventura destas?
O essencial para viver e nada mais do que isso, porque durante 4269,7 km tudo o que levamos vai às nossas costas, ou seja, nada de coisas que não são realmente importantes para o desafio que queremos enfrentar. Mas mais do que a tenda, saco de cama, roupa e comida certa, o fundamental é a pessoa saber que aquilo não são umas férias, sim é lindo, muito lindo mesmo, mas vão passar fome, frio, calor, ter muito cansaço e dor. Por isso a pessoa tem de ir mentalizada que se quer realmente andar todo o caminho, vai ter de ignorar muitas destas cosias e continuar a andar.
Em viagens de longas distâncias a caminhar, o corpo sofre algumas lesões, como lidaste com a dor e o que utilizaste para curar as feridas?
Não posso falar muito sobre isso porque eu não tive lesões. Senti o meu corpo a ficar mais forte de dia para dia, digo mesmo que a certa altura eu era uma máquina, só acima dos 40 ou 50 km diários é que sentia algum cansaço. Fiz dias mais de 60, outros mais de 70 e um mais de 80 km. Se bem que a média final foi de 39,5 km, porque dos 108 dias em 6 não andei e em alguns andei poucos km, ficava na vila para tomar um banho e comer muito, muito, muito. As vezes que tive mais perto de uma lesão foram sempre por culpa própria, no total do caminho utilizei 4 pares de ténis e devia ter utilizado 5. Uma das vezes os ténis já estavam estragados e tive de andar 2 dias com eles, a entrar pedras e outras coisas, foram 2 dias horríveis, depois fiz as últimas 3 semanas do deserto com os ténis que utilizei nas serras, já sem sola nem nada, não encontrei nenhuma loja e sofri um bocado. Outra vez que tive perto de uma lesão, foi também já perto do final, um dia que tive completamente desidratado e urinei 11 vezes sangue, aí pensei que podia dar alguma coisa de mal ao meu corpo, mas felizmente cheguei a um lugar com água e hidratei bem. Ao fim do dia, ou da caminhada, depois de montar a tenda, alongava e por fim meditava, antes de fazer o jantar. Senti, quase sempre, o corpo conectado com o que eu queria.
Qual foi o sítio por onde passou que o deixou mais surpreendido?
Nesta caminhada? Talvez o Parque Nacional North Cascades que faz fronteira com o Canadá e as Serras, no Centro da Califórnia. É uma imensidão de natureza à nossa volta, sentimos que estamos a ser abraçados por ela e sabe tão bem!
Como organizava as dormidas? Em tendas? Hotéis? Sabia onde ia dormir de um dia para o outro antes de iniciar mais uns kms?
Eu sou pouco de organizar, muita organização significa prisão para mim. Sabia que em 3, 4 ou 5 dias tinha de chegar à próxima vila, fazia essas contas consoante a comida que ainda tinha e aí andava e andava até chegar lá. Das 107 noites, 96 foram a acampar, dessas 44 sozinho e 52 acompanhado. Às vezes pensava que ia andar 30 km e andava 60, outras pensava que ia andar 60 e andava 20. Só nas vilas é que cheguei a combinar coisas com outros caminhantes, para dividir os custos dos quartos, dividi 1 quarto com um rapaz e fui para um hostel com outras pessoas também. Eu procurava sempre a paisagem mais bonita para dormir. Pelos 4300km do PCT é permitido acampar em qualquer lado, desde que não se estrague nada em volta. #leavenotrace é o termo mais utilizado.
Estou certa de que passou por diversos animais selvagens durante o seu percurso, que tipos de animais mais encontrou? Teve alguma experiência menos boa neste sentido?
Sim, era uma das coisas que mais procurava, o encontro com a vida selvagem. Estar no habitat deles, o único lugar onde eles devem estar e não num circo, numa jaula de um zoo, nem em gaiolas ou aquários minúsculos, nada disso eles devem estar livres e viver no lugar onde pertencem, a natureza. Não é giro tirar fotos abraçados a animais selvagens nem faz dessa pessoa alguém mais corajoso, antes pelo contrário.
Ali, no meio daquela natureza tive a sorte de estar frente a frente com 5 ursos, um deles bebe. Só o segundo é que ameaçou correr para mim, eu gritei, por instinto porque nem pensei, apesar de ser a cosia certa a fazer, e ele parou. Depois tive um encontro com um puma e apesar dele não ter feito nada de nada, foi assustador. Eram mais ou menos 10.30 da noite, eu ia a andar e sabia que não tinha ninguém à minha volta por várias horas, no deserto tive quase sempre sozinho, até que no meio de duas curvas com uns 10 a 15 metros de linha reta estava um puma sentado no trilho a olhar para mim. Eu tiro o tlm e ligo a lanterna, para ter bem a certeza, ia a andar com a luz na cabeça, e sim, era um puma. Falei para ele qualquer cosia estúpida como:
– Puma deixa-me passar, sai do caminho, etc.
E ele foi embora, para o meio da vegetação seca, se quando eu o vi tive medo, quando deixar de ver fiquei aterrorizado. Atenção, não quero fazer parecer mais do que é, eu nunca tive realmente em perigo, porque eles têm tanto ou mais medo de nós, do que nós deles, e eles só atacam se for um encontro mesmo muito, muito perto.
Qual a melhor situação que guarda desta aventura?
Estar lado a lado com a vida selvagem, porque apesar de em uma ou outra vez ter sido mais assustador, como o caso do segundo urso e do puma, senti que eles partilhavam aquele habitat comigo, senti que eles estavam onde têm que estar e que eu era bem vindo ali. Não consigo bem explicar, mas foi tão bom ver estes animais livres. Já destruímos tantos habitats, muito mal já foi feito, vamos pelo menos tentar preservar o que ainda resta. Um bocadinho menos de ganância neste mundo era tão bom!
Antes de terminar, como descreve os 108 dias?
Uma masterclass sobre o meu corpo e mente, muito sobre o meu corpo, mas bem mais sobre a minha mente, porque andar 14 a 15 horas por dia esta cabeça deu a volta ao mundo milhões de vezes, felizmente quase sempre pelo lado positivo, mas às vezes passava pelo lado negativo.
Finalizando, o seu livro “Walking around” é uma fotorreportagem de uma viagem de vinte meses pelo mundo. Qual a mensagem que transmite aos leitores?
Sim, o livro “Walking Around” é a fotorreportagem e também a história sobre os 20 meses de viagem. Assim como o livro do PCT, o “Walking Around Sul” é o diário sobre a caminhada, dia a dia e depois tem também a fotorreportagem, ambos edição de autor onde podem comprar pelo meu site ou Instagram, só. É uma boa prenda de Natal.
A mensagem que eu tento transmitir e que vejo isso todos os dias na minha vida em viagem é que grande parte das pessoas do mundo são boas e ajudam o próximo, tenho sentido tanto amor por todo o lado, como senti agora nos Estado Unidos.
– Eles pensam que são os donos do mundo. Pensava eu.
E ali a única coisa que senti foi amor, assim como quando estou numa pequena vila do Irão, da Mongólia, da Birmânica, da Escócia. Não interessa a religião, a cor a orientação sexual, o género nada, somos todos iguais e temos de uma vez por todas meter o mundo a funcionar dessa maneira, todos lado a lado.
Fotos: Fábio Inácio