A atleta portuguesa Carla André deu hoje início a um dos mais exigentes desafios da sua carreira: a Ultra Gobi 400 km, uma das provas de ultramaratona mais exigentes e exclusivas do mundo, que decorre no deserto de Gobi, na China. Com um percurso solitário e extremo, esta corrida representa não apenas uma superação física, mas também uma profunda jornada de introspeção e descoberta pessoal. Carla será a primeira portuguesa a participar nesta prova, levando consigo o nome de Portugal e uma história de resiliência que inspira.
Nesta entrevista exclusiva, Carla partilha connosco a preparação para a prova, os seus receios, as motivações profundas que a movem e o simbolismo de correr exatamente 20 anos após o acidente que mudou a sua vida. Uma conversa íntima e inspiradora com uma mulher que corre com o coração e sonha com os pés firmes na terra.
O teu nome surge agora ligado à Ultra Gobi, uma corrida lendária e exclusiva. Antes de falarmos da prova, como descreves a evolução do teu percurso na corrida até chegares a este ponto?
Comecei a correr em 2010 e, a cada ano, fui aumentando a distância e a exigência: 10 km, 21 km, maratona, ultramaratona. Em 2015, a ambição passou a ser não só quebrar a barreira da distância, mas, acima de tudo, superar a exigência física e psicológica. Foi então que decidi alinhar na partida da Marathon des Sables, uma das provas de deserto mais emblemáticas do mundo.
Esse desafio mudou completamente o sentido que a corrida tinha para mim. As sensações provocadas pelo contacto com o deserto levaram-me a querer seguir esse rumo e a descobrir a minha essência. O deserto ensinou-me que a vida pode ser simples, que a felicidade não vem de bens materiais, mas de momentos de conexão e autodescoberta. Tornou-se um lugar sagrado para me ligar à minha alma.
Esse ano marcou o início da minha missão: correr em tantos desertos quanto possível. Comecei a colecionar experiências em países como Omã, Chade, Argélia, Namíbia, África do Sul (Kalahari), Chile (Atacama), Arábia Saudita, Uzbequistão, Iémen, EUA (Badwater), Bahrein, Tunísia, entre outros. Cada deserto tem a sua beleza e desafio únicos, e cada um representa um capítulo profundo na minha vida.
Carrego o sonho de conhecer desertos em todos os continentes e continuo essa travessia. O deserto é a minha paixão, mas o contador não para: hoje somo 119 provas, entre 98 ultramaratonas e 21 maratonas.
Gostaria que a Gobi 400 fosse a minha 100.ª ultramaratona, mas não consegui encaixar mais uma prova antes da partida. Será a 99.ª, e sigo desejosa de celebrar a 100.ª no meu cantinho em Portugal, como forma de homenagear esta travessia que tanto me preenche.
Tudo isto é muito mais do que correr, números ou quilómetros. É viver, descobrir, sonhar. É felicidade.
Foste uma das poucas atletas convidadas para a Ultra Gobi, uma prova de elite. O que representou para ti este convite? E como recebeste a notícia?
Correr no deserto de Gobi era um grande sonho. Quando descobri a prova, através das minhas pesquisas, ela nunca mais me saiu do pensamento. Já decidida a abraçar o desafio, surgiu o convite para ser uma das cinco Gobi Dreamers.
A minha história tocou o coração de quem já percorreu este desafio. Não consigo descrever a emoção que senti ao receber a notícia.
O meu limite de distância até agora é de 310 km (ALUT), a corrida mais longa que realizei. Chegou a hora de testar os meus limites, ao mesmo tempo que continuo a missão de conhecer todos os desertos do mundo. E é agora que o Gobi entra nesta história. É o momento e o lugar certos.
O que torna tudo ainda mais significativo é o facto de a corrida decorrer a 5 de outubro de 2025 — exatamente 20 anos após o acidente que mudou a minha vida (5/10/2005).
Para mim, esta corrida é muito mais do que um desafio. É uma celebração da vida, um testemunho da força do espírito humano e uma oportunidade de testar os meus limites mais uma vez. O Gobi não é apenas mais um deserto — é o deserto que me lembrará de quão longe cheguei e de quanto mais longe ainda posso ir.
A Ultra Gobi decorre no Deserto de Gobi, na China, um dos mais extensos e inóspitos desertos do mundo. O que esperas encontrar neste cenário tão singular e distante do que estás habituada?
O Deserto de Gobi é um dos mais fascinantes e enigmáticos do mundo, cheio de história, onde a areia encontra a neve e os sussurros de viajantes antigos permanecem nos ventos, contando histórias de resiliência. Acredito que será um dos desertos mais especiais que irei correr.
É um deserto quente e frio, que molda a natureza. O incrível é que carrega formas muito diversas — mais do que a nossa imaginação de dunas. Encontramos oásis, montanhas, rochas imponentes, vegetação colorida, árvores… uma verdadeira manifestação da mãe natureza.
Tenho a certeza de que, mais uma vez, ficarei apaixonada pelas cores e pelas histórias que ele me contará. Todos os desertos são belos, todos são únicos.
Qual será a distância que vais percorrer e como encaras esse desafio em termos de preparação física e mental?
Irei correr a distância maior: 400 km, aquela que me permite uma verdadeira introspeção no deserto. Encaro esta travessia passo a passo, conquistando cada ponto de controlo como uma meta. Essa será a minha meta.
Não podemos iniciar uma prova desta dimensão a pensar apenas na chegada. É preciso dividir o desafio em pequenos desafios.
Considero que a preparação, mais do que física, é mental. Só a força mental permitirá ultrapassar as dificuldades, dores e sofrimento que surgirão nos quilómetros que parecem não passar. Mas a experiência ensina-me que o sofrimento se esquece — a superação fica para sempre.
Na tua perspetiva, quais serão os maiores obstáculos: a vastidão do deserto, a distância, o terreno, o clima ou a gestão mental da prova?
Todos serão um desafio, mas uma das minhas maiores fragilidades é a gestão do frio.
Uma das características do Gobi é a enorme amplitude térmica: as temperaturas podem chegar aos 40 °C durante o dia e cair para valores negativos à noite.
O meu corpo está habituado a temperaturas elevadas — não tenho dificuldade em correr com 50 °C, como fiz na Namíbia em novembro de 2024. Mas o frio preocupa-me, e por isso adquiri equipamento para suportar temperaturas negativas (até –25 °C).
Quando corro no deserto, a minha primeira análise é à temperatura mínima. Não me preocupo com os máximos.
Este receio tem um impacto psicológico grande e obriga-me a abdicar de alguma leveza na mochila, para carregar o equipamento necessário. A organização referiu que, em 2024, a sensação térmica chegou aos –20 °C.
Esse será o meu maior desafio — além de superar o meu limite de distância já percorrida (310 km).
Esta prova inspira-se na peregrinação do monge Xuanzang pela Rota da Seda, um percurso marcado por superação e descoberta. Sentes que essa dimensão histórica e cultural dá à prova um significado especial, para além do desafio físico?
Sim, sem dúvida. É impossível ficar indiferente à ideia de que faremos parte da história. A prova consegue transportar-nos para séculos atrás, numa das jornadas espirituais e intelectuais mais épicas da história asiática.
Xuanzang viajou sozinho por regiões instáveis, guiado apenas pela fé e pela determinação — valores que levarei no coração nesta travessia de 400 km.
Esta peregrinação é símbolo de busca pela verdade, coragem e ligação cultural. São esses os valores que carregamos quando embarcamos em desafios como este.
Quais são as tuas principais expectativas para esta participação? E quais os receios que levas contigo antes da partida?
O meu principal objetivo é concluir o desafio.
Nos últimos meses, tive dificuldade em encontrar equilíbrio entre a vida profissional e pessoal, pela forma como encaro o dever e a entrega com paixão e dedicação. Acredito que não existe uma preparação perfeita para uma distância tão longa e cheia de desafios, mas confio profundamente no poder da mente, na força do querer e na fé que carrego no coração.
O meu maior receio, como referi, é o frio. Mas vencemos os nossos medos com preparação — e acredito que estou preparada.
Qual é a importância de competir numa das provas mais exigentes do mundo e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a Portugal na China?
É muito especial ser a primeira portuguesa a representar o país numa das provas mais exigentes do mundo. É um enorme orgulho, mas também uma grande responsabilidade.
À semelhança dos meus últimos desafios, darei tudo, escutando sempre o corpo, mas com a certeza de que a meta me trará um momento inesquecível.
A Trail-Running.pt foi escolhida como Media Partner oficial do evento e vai acompanhar a tua participação. Que significado tem para ti poder partilhar esta experiência com o público português?
Agradeço profundamente o acompanhamento da Trail-Running.pt nesta prova tão especial. Saber que as pessoas que me acompanham há tantos anos em Portugal poderão seguir os meus passos tem um significado imenso.
Acredito que a conclusão destes desafios tem uma componente emocional muito forte. Saber que estão comigo, a enviar força e a rezar, será a luz nos momentos mais difíceis.
É inacreditável a força que traz saber que, a qualquer momento, sabem exatamente onde estou. A organização irá partilhar um tracker, e poderão acompanhar-me em tempo real.
Fotos: Ultra Gobi