Entrevista: A Última Dança Abutrica

Autor: Rita Vicente    Data: 26-02-2025
Publicado na categoria: Entrevista, Eventos

O “Trilhos dos Abutres” chegou ao seu momento mais simbólico com a edição “The Last Dance”, encerrando um ciclo de 15 anos de dedicação ao trail running e à valorização do território de Miranda do Corvo. Realizado no fim de semana de 31 de janeiro a 2 de fevereiro, o evento apresentou percursos desafiantes de 55 km (UTA), 30 km (TA), 21 km (MTA) e, para os mais jovens, 13 km (TJA), onde a lama, fiel à tradição, não deu descanso aos atletas.

Ao longo das suas 13 edições, esta prova consolidou-se como uma referência incontornável no panorama nacional e internacional, não só pela exigência dos seus trilhos e pela envolvência da comunidade, mas também pela paixão e resiliência que sempre a caracterizaram.

Nesta entrevista, Tiago Araújo, responsável do evento, reflete sobre o impacto deste percurso, os momentos marcantes e os desafios futuros, numa conversa conduzida por Rita Vicente, que deixa transparecer a forte ligação entre o Trilhos dos Abutres, os atletas e o território. Será esta a última dança ou apenas o início de um novo capítulo?

O que representou para a organização esta edição “The Last Dance”? Há um sentimento especial no ar?

Para nós, enquanto organização de uma associação sem fins lucrativos, “The Last Dance” representou o fecho de um ciclo de 15 anos de dedicação ao desporto e à promoção do nosso território. Este momento carregou um simbolismo muito forte, não só pela forma como o evento cresceu ao longo dos anos, mas também porque alguns dos principais organizadores manifestaram a intenção de sair, o que implica repensar profundamente o nosso modus operandi. Há, sem dúvida, um sentimento especial no ar, pois estamos perante a transição para uma nova fase que exigirá novas abordagens e, possivelmente, uma mudança estrutural para garantir a continuidade e a sustentabilidade do projeto, caso assim se decida avançar.

Após 13 edições, qual é o balanço que faz da evolução do Trilhos dos Abutres, tanto ao nível da organização quanto da experiência dos participantes? E quais foram os momentos mais marcantes?

O balanço é muito positivo. Em poucos anos, tornámo-nos um dos eventos de trail com maior procura em Portugal, esgotando inscrições em menos de 24 horas desde 2013 e, em 2015, recebendo 1.500 inscrições em apenas cinco minutos. Esse sucesso levou-nos a adotar o sistema de sorteio, inspirado em modelos internacionais, para garantir maior equidade.

O impacto económico médio na região ronda os 350.000€, e as diversas iniciativas sustentáveis e formativas – como a escola de formação ATRS, o centro de estágio em Vila Nova e o programa “Trail na Escola” – reforçam o legado do evento.

Dos momentos mais marcantes, destacam-se o 2019 Trail World Championships, a épica edição de 2015 com condições meteorológicas adversas que testaram a resiliência de todos e o Campeonato Nacional Ultra, cuja organização enfrentou desafios de comunicação que serviram de lição para o futuro.

O que considera que torna o Trilhos dos Abutres uma prova tão especial e icónica no trail nacional?

Desde a primeira edição em 2011, sempre foi uma prova “de atletas para atletas”, mantendo o foco no espírito genuíno do trail. A forte procura levou-nos a adotar um sistema de pré-inscrição e sorteio, em vez da simples ordem de chegada, para garantir equidade e respeitar a capacidade de carga ambiental. Esta opção surgiu da crescente adesão, que esgotava vagas em minutos, provocando “crash” informático e frustração entre os participantes.

Este cuidado organizativo, aliado ao cenário único das serras de Miranda do Corvo – com trilhos técnicos, ribeiras e cascatas na Serra da Lousã – cria a mística que atrai atletas de todo o país e além-fronteiras. A diversidade de fauna e flora, o envolvimento da comunidade local e o investimento contínuo em segurança, logística e experiências sustentáveis reforçam a identidade do evento. Juntamente com o apoio inestimável de voluntários apaixonados, tudo isto faz do Trilhos dos Abutres uma prova marcante e inesquecível no panorama nacional.

Com o nome “The Last Dance”, há uma carga emocional muito forte nesta edição. Como é que essa ideia de “última dança” influenciou a atmosfera e a motivação de todos os participantes?

O impacto do slogan “The Last Dance” foi imediato e cumpriu o objetivo de chamar a atenção dos principais intervenientes do trail em Miranda do Corvo, incluindo os sócios da Associação Abutrica e as entidades responsáveis pelo desenvolvimento desta modalidade no concelho. Ficou claro que era tempo de refletir sobre o futuro e promover mudanças, não só no próprio evento, mas também nos projetos e ativos locais associados ao trail (como o centro de estágio, a ATRS e a Skyrace).

Por outro lado, muitos atletas viveram esta edição como se fosse realmente a última oportunidade de participar, o que gerou uma atmosfera de entusiasmo e emoção adicionais. Apesar disso, acreditamos fortemente num regresso, desde que sejam criadas bases sólidas e se desenvolvam os projetos mencionados, garantindo a continuidade e o crescimento saudável do trail na região.

Qual tem sido o feedback dos atletas e do público em relação a uma das provas mais mediáticas do país? Já se começa a perceber um ambiente de nostalgia, passados alguns dias da edição?

O feedback tem sido muito positivo ao longo dos anos, como comprovam as cerca de 3.000 pré-inscrições que recebemos em apenas 72 horas, de forma consistente, na última década. Esse reconhecimento contínuo é a nossa maior motivação para organizar o evento de forma voluntária, ano após ano.

O Trilhos dos Abutres é famoso pelos seus desafios extremos, e a lama é, sem dúvida, um dos elementos que marca a experiência da prova. Considera que este é um dos fatores que contribui para atrair milhares de atletas?

A lama tornou-se, de facto, um símbolo do evento Trilhos dos Abutres, contribuindo para o apelo de enfrentar condições extremas. No entanto, o encanto da prova não se resume a esse aspeto. A diversidade geológica e paisagística da Serra da Lousã, no concelho de Miranda do Corvo, oferece cenários únicos: desde zonas históricas, aldeias de xisto e templos, até cascatas, ribeiras e trilhos técnicos entre penedos e vegetação densa. É esta variedade de ambientes – que combina desafio, beleza natural e património cultural – que continua a atrair milhares de atletas em busca de uma experiência verdadeiramente completa.

Após a conclusão da “Last Dance”, quais são as principais memórias ou sentimentos que espera que os atletas guardem desta edição tão marcante?

Esperamos que guardem uma sensação de missão cumprida, de superação pessoal e de comunhão com a natureza, lembrando a lama, o frio e os trilhos que tornaram esta prova verdadeiramente lendária. No fundo, desejamos que os atletas guardem não só a nostalgia de um possível adeus, mas também a certeza de que, quando a paixão é genuína, a história pode sempre recomeçar de forma renovada.

Se esta for mesmo a última edição, que legado deixa esta prova para a modalidade?

Mais do que um evento isolado, o “Trilhos dos Abutres” foi um laboratório de ideias, pioneiro na criação de projetos-piloto que hoje se refletem em múltiplos centros de trail e em escolas de formação de norte a sul do país. A sua organização, focada em profissionalismo e paixão, tornou-se um exemplo que inspirou muitas outras provas, mostrando que é possível aliar o respeito pela natureza à promoção do desporto e à envolvência das comunidades locais. Se efetivamente a “Last Dance” marcar o encerramento do “Trilhos dos Abutres” tal como o conhecemos, fica a certeza de que o seu legado já está vivo noutras iniciativas e continuará a ser lembrado como um dos pilares que ajudou a moldar o trail em Portugal.

Quais são os pontos mais icónicos do percurso, aqueles que marcam a memória dos atletas e definem a “alma” do Trilhos dos Abutres, conferindo-lhe essa aura mística que torna a prova única?

A prova atravessa lugares emblemáticos que, mais do que simples postos de passagem, traduzem a essência do “Trilhos dos Abutres” e a sua forte ligação ao território. Alguns dos pontos incontornáveis são:

  • Zona Histórica da Vila: inclui o Alto do Calvário e as escadas do Quebra-Costas;
  • Parque Biológico da Serra da Lousã: espaço de preservação ambiental e contacto direto com a fauna e flora, testemunho do respeito pela natureza que o evento promove;
  • Templo Ecuménico: símbolo de união espiritual, destaca-se pela arquitetura e pela mensagem de tolerância religiosa;
  • Serra de Vila Nova: ponto alto do percurso, combina a vertente serrana com o carisma das populações locais, incluindo referências como o Parque Eólico e o Observatório Astronómico António dos Reis;
  • Moinhos de Água Abandonados e a Barragem das Louçainhas: vestígios da relação ancestral do Homem com o meio, moldando e aproveitando os cursos de água;
  • Parque de Merendas das Mestrinhas;
  • Santuário da Nossa Senhora da Piedade de Tábuas e a respetiva cascata: inseridos num cenário bucólico, evocam tradição e espiritualidade;
  • Aldeia Abandonada do Cadaval: ruínas que contam histórias de outras épocas e evidenciam a dureza de viver na montanha;
  • Ribeira do Conde e do Espinho: corredores são surpreendidos pela beleza das linhas de água, muitas vezes envolvidas em neblina e vegetação densa;
  • Penedo dos Corvos: formações rochosas imponentes e simbólicas, palco de passagens técnicas que põem à prova resistência e técnica;
  • Gondramaz: aldeia emblemática de xisto, onde a hospitalidade e o ambiente serrano cativam qualquer visitante;
  • Lamaçal do Espinho: inconfundível marca de batalha para os atletas, traduzindo na perfeição a dureza e o “ADN Abutre”.

É a combinação destes locais – onde natureza, património e desafio físico se entrelaçam – que dá vida ao “Trilhos dos Abutres”, inspirando memórias e cultivando a “mística” de superação e companheirismo que tanto caracteriza este evento.

Ao olhar para trás, para todas as edições do Trilho dos Abutres, qual é a mensagem que gostaria de deixar aos atletas e a todos aqueles que, de alguma forma, viveram e contribuíram para o sucesso do evento ao longo destes anos?

A nossa mensagem é de profunda gratidão. A todos os que correram, apoiaram, partilharam, colaboraram, sacrificaram horas em prol desta “aventura” – muito obrigado. Foi graças a cada um que o Trilho dos Abutres se tornou mais do que apenas uma prova: tornou-se um movimento, um momento de celebração do desporto e do espírito comunitário. Esperamos que cada pessoa leve na memória a determinação necessária para superar os seus próprios obstáculos na vida, pois é esse o verdadeiro legado de uma prova de trail.

Por último, que conselhos daria a uma futura organização e qual seria, na sua ótica, a organização ideal para o evento?

Se, no futuro, surgir uma nova organização disposta a assumir o legado do Trilho dos Abutres (ou a criar um evento que partilhe do mesmo espírito), é fundamental que consiga conciliar profissionalismo e paixão. Em primeiro lugar, deve manter a essência local, envolvendo ativamente a comunidade e promovendo as características únicas do território – da cultura à gastronomia, passando pelo património natural. A sustentabilidade é outro pilar essencial, tanto no controlo de resíduos como na proteção das áreas sensíveis e na sensibilização ambiental dos participantes. Além disso, é indispensável apostar nos voluntários, reconhecendo o seu papel central na dinâmica do evento e investindo em formação, valorização e boas condições de trabalho. Por fim, a comunicação transparente faz toda a diferença: é ela que gera confiança e proximidade entre atletas, parceiros, comunidade local e público, assegurando que todos se sintam parte do projeto e contribuam para o seu sucesso.

Fotos: Matias Novo

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